segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CARTA AOS PARAENSES


No dia 11 de dezembro, você votará sim ou não à partição do Pará em três unidades. A proposta é que toda a metade oeste do atual estado se transforme no estado do Tapajós e a parte sudeste no de Carajás, continuando com o nome de Pará a região onde fica Belém e um pouco mais. Essa história de criação de novos estados, como você bem sabe, é controvertida. Chovem argumentos por todo lado, todos altamente especulativos e por isso altamente discutíveis. O que escapa à controvérsia é que se trata de ótimo negócio para os políticos, dada a orgia de novas instituições a criar, de novos cargos a preencher e de dinheiro a gastar. Tudo isso você sabe. O objetivo destas mal traçadas é falar de um personagem que depois de muitas peripécias, Brasil afora, agora apartou por aí, metido na campanha do plebiscito. O nome dele é Duda Mendonça. Gentilmente ele ofereceu seus serviços à causa separatista, ele que, se não vive no estado, pelo menos tem bois que vivem, na fazenda de sua propriedade no território candidato a virar Carajás. Oferta aceita, e ei-lo no comando da campanha do sim.

Todo mundo o conhece. Sabe de seus triunfos eleitorais, como mago do marketing, bem como do lado menos aprazível de réu no processo do mensalão. Já o que ele andou aprontando em eleições de São Paulo o amigo paraense não deve saber. Permita um breve relato. Na eleição de 1996 para a prefeitura de São Paulo, Duda Mendonça fez o marketing do candidato Celso Pitta. Quatro anos antes ele fizera o do mentor de Pitta, Paulo Maluf. Pitta era um político desconhecido. O marqueteiro julgou que a campanha necessitava de alguma pirotecnia. Saiu-se então com um trem voador, um mágico bólido que, suspenso em vias elevadas, catapultaria a cidade para um serviço de transporte até então só acessível à família Jetson. Nas animações para a propaganda na TV, ficou uma beleza. Para transformá-lo em realidade o custo seria assombroso, a logística complicada, a utilidade discutível, mas e daí? Importava ganhar a eleição. Celso Pitta ganhou.

E agora? Se ganhou embalado pelo trem, impunha-se fazê-lo. O novo prefeito começou a plantar vigorosos pilotis, altos, de 15 metros, ao longo do rio mais central da cidade, o Tamanduateí. Sobre eles seria construída a via ao longo da qual correria a engenhoca. Algumas centenas de milhões de reais foram investidos na obra, e ficou-se nisso. Pitta não passou dos pilotis iniciais. Lá ficaram eles, abobalhados e inúteis – um pressuposto de obra de engenharia tornado ruína no nascedouro. A sucessora de Pitta, Marta Suplicy, pensou no que fazer daquilo, pensou, pensou, e nada fez. O sucessor de Marta, José Serra, chegou a cogitar em destruir os pilotis. Depois pensou melhor, e resolveu aproveitar pelo menos os já existentes. A obra foi inaugurada, já na administração Gilberto Kassab, não mais como via de trens, mas como simples corredor suspenso de ônibus.

O amigo paraense não precisa conhecer todos os detalhes do sinistro episódio. A intenção é alertá-lo sobre o alcance que pode atingir uma marquetagem irresponsável – e a palavra “irresponsável” vai aqui no sentido puro de qualificar um agente que não responde por seus atos. O marqueteiro não foi eleito. Não tem função pública. Portanto, não lhe cabe responder por um ato da administração pública. E no entanto teve origem no capricho de um marqueteiro toda a sucessão de decisões e indecisões que resultou num corredor de ônibus suspenso: ao qual só se tem acesso subindo penosas escadas, desarticulado do geral do sistema de transportes urbanos, desestruturador da paisagem e na contramão do melhor urbanismo – que desaconselha as vias aéreas pelas cicatrizes que impingem às cidades e pela deterioração que produzem no entorno.

Duda Mendonça já foi de Paulo Maluf a Lula. Se um marqueteiro deve manter a coerência política, é algo que escapa a este missivista. É curioso, em todo caso, lembrar que nos anos 1980 ele esteve à frente da campanha que se opunha a um projeto de divisão do estado da Bahia. Um texto por ele composto, e que era lido por Maria Bethânia na TV, afirmava que dividir a Bahia era como separar o Jorge do Amado, o Dorival do Caymmi, o Rui do Barbosa, o Gilberto do Gil. Já separar a Fafá do Belém, o Paulo Henrique do Ganso, o Billy do Blanco e o Jayme do Ovalle, isso pode. Em São Paulo, ao arriscar-se no urbanismo, Duda Mendonça deixou sua marca indelével no ônibus pendurado à beira do rio. Agora se aventura na engenharia política e calca a mão pesada no mapa do Brasil. Leve isso em conta, amigo paraense.

CARTA AO AMIGO PARAENSE
POR ROBERTO POMPEU DE TOLEDO
REVISTA VEJA

domingo, 20 de novembro de 2011

JATENE E A DIVISÃO DO PARÁ


Minhas amigas e meus amigos.

O Pará vive o maior desafio da sua história recente. No plebiscito do próximo dia 11 de dezembro, cada paraense, cada homem e cada mulher, terá a responsabilidade de dizer se quer o Pará unido ou dividido em três pedaços.

Como todo paraense, também estou preocupado com a votação, mas como governador tenho a obrigação, a responsabilidade, de estar particularmente atento ao que ocorrerá no dia seguinte ao plebiscito. Quais as consequências reais e os desdobramentos dessa disputa.

Todos sabemos que a questão da divisão do nosso Estado não é coisa nova, à semelhança de vários projetos de divisão territorial existentes no Congresso Nacional, envolvendo estados de grandes e pequenas extensões, como Minas Gerais e Piauí, estados muito ricos e muito pobres, como São Paulo e Maranhão, entre outros. Entretanto, não se pode negar que, até o ano passado, esse assunto, em maior ou menor intensidade, se constituía discurso de alguns políticos nas suas campanhas eleitorais e se esgotava no pós-eleição; portanto, com consequências bem diferentes do que pode ocorrer agora, quando ameaça virar elemento de conflito entre irmãos.

Paraenses, ainda que eu deseje o contrário, tudo leva a crer que, seja qual for o resultado do plebiscito, o dia seguinte será marcado por mágoas, ressentimentos e desconfianças que podem se tornar duradouras, considerando que, diferentemente das eleições regulares que se renovam a cada quatro anos, o plebiscito terá caráter muito mais efetivo e permanente.

E aí cabe perguntar: quem vai cuidar das feridas? E dos ressentimentos? Como evitar que eles se enraízem nos corações e mentes da nossa gente?

A insegurança é maior quando sabemos que o projeto de divisão em pauta não foi fruto de qualquer estudo prévio que procurasse definir o perfil de cada novo Estado. Quais os municípios que deveriam integrar esse ou aquele Estado para que se tivesse um melhor equilíbrio econômico, social e político, para que o povo fosse efetivamente beneficiado. Não, a população em todo esse processo, lamentavelmente, não teve seus interesses considerados. Foi apenas 'um detalhe'. 'Detalhe' que, agora, tem a responsabilidade de decidir diante de um 'prato feito', sem poder mudar mais nada.

Até que seja provado o contrário, os parcos estudos existentes não fundamentam uma proposta de divisão, quando muito tentam justificar, ou não, uma divisão baseada num elevado grau de aleatoriedade e subjetividade. E é neste cenário que, como governador, tenho que mediar interesses para que os problemas não se agravem.

Se o 'não' for vitorioso, teremos que buscar, todos juntos, cada vez mais, aproximar as regiões e fortalecer o que nos une, implantando novas formas de gestão territorial. Por outro lado, se for o contrário, entre o plebiscito e a implantação de um novo Estado, como ficará a governança do todo que na prática ainda se manterá unido? Quanto tempo levará a efetiva implantação do novo Estado, uma vez que para tal tem que ser ouvida a Assembléia Legislativa, o Congresso Nacional e até a Presidência da República?
Amigas e amigos, o governador, independentemente da sua vontade, tem a responsabilidade constitucional e institucional e o dever ético de conduzir essa questão tão delicada, alertando e tratando das rugas, buscando evitar que as cicatrizes se eternizem.

Os estados até hoje criados o foram em condições bem diferentes das atuais, não colocando em confronto as pessoas, não onerando ainda mais as populações locais e, nesse sentido, nos ajudam muito pouco sobre a experiência do dia seguinte que terá que ser vivida por nós, em certo sentido cobaias de um processo novo e diferente.

Por tudo isso, é preciso ter cuidado ao tratar dessa questão. A ética da responsabilidade me impõe deveres dos quais não posso me afastar. Entretanto, se a responsabilidade me aconselha isenção, do mesmo modo, até por amor à nossa gente, me exige que alerte a todos sobre alguns riscos.
Sempre digo que o voto é tanto mais expressão democrática quanto mais as pessoas souberem sobre o que estão votando; caso contrário, ele pode se transformar no simples aval popular para interesses de alguns, chancela da vontade de grupos específicos.

Assim, não posso deixar de registrar a minha preocupação diante dos rumos da campanha, particularmente na televisão, onde salta aos olhos que o 'vale tudo' está em marcha. Falo, exemplificando, do esforço de tentarem destruir a autoestima do paraense e mostrar, como alternativa, que a simples divisão, automaticamente, trará ganhos financeiros aos três estados.

Ora, com todo o respeito que possa ter pelos que fazem tal afirmação, ela não tem qualquer fundamento técnico, como pretendem seus defensores. Pelo contrário. Se quanto à elevação das despesas a criação de novos estados não deixa dúvidas, quanto às receitas, pelo menos atualmente, qualquer prognóstico se faz sob enorme incerteza. Especialmente nesse momento que as transferências federais, e em especial os critérios de distribuição do Fundo de Participação dos Estados (FPE), até por decisão judicial, devem ser reformulados até o final de 2012.

Minhas amigas e meus amigos, eu nunca vi alguém de Belém dizendo que não gosta dos irmãos de Santarém; do mesmo modo, jamais vi alguém de Santarém dizendo que odiava o povo de Marabá. Não, felizmente isso não faz parte da nossa história.

Temos dificuldades, sim, mas quem não as tem? Historicamente, fomos usurpados de nossas riquezas sem que parte da classe política fosse capaz de se unir na defesa das mesmas. Por que jamais nos mobilizamos, efetivamente, para fazer com que a República compensasse o nosso Estado pela fantástica contribuição que sempre deu, e continua dando, para o desenvolvimento brasileiro? Quem tiver boas propostas que as apresente, mas não posso aceitar que, na tentativa de impor seus interesses, qualquer grupo fantasie a realidade e recorra a meias-verdades, levando a nossa população, sobretudo a mais simples, independente da região em que vive, a equívoco e frustração. Não posso aceitar que a luta pela divisão do território se transforme em divisão do nosso povo.

A Europa está cheia de exemplos em que as lutas religiosas, étnicas, deixaram feridas que não cicatrizam. Não podemos permitir que isso aconteça conosco. O Pará não merece isso. A nossa gente não merece.
No peito de cada paraense, esteja ele em Belém, Santarém, Marabá, Altamira, São Felix do Xingu, Chaves, ou em qualquer lugar, bate um coração generoso e vencedor, sempre aberto e disponível a ajudar a todos, até com as nossas riquezas e belezas. Por isso, basta que nos determinemos, individual e sobretudo coletivamente, que construiremos uma sociedade mais feliz.
Que Deus nos dê sabedoria e ilumine a todos.

Simão Jatene
Governador do Pará

PENSAMENTOS E SONHOS SOBRE O BRASIL


1. O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, para criar relações mais igualitárias e acabar com a corrupção?

2. O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo.

3. Apesar da pobreza e da marginalização, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação una e complexa.

4. O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso,tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor.

5. O medo é inerente à vida porque “viver é perigoso” e sempre comporta riscos. Estes nos obrigam a mudar e reforçam a esperança. O que o povo mais quer, não as elites, é mudar para que a felicidade e o amor não sejam tão difíceis.

6. O oposto ao medo não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no carnaval e no futebol. Mas também bom na agricultura, na arquitetura, na música e na sua inesgotável alegria de viver.

7. O povo brasileiro é religioso e místico. Mais que pensar em Deus, ele sente Deus em seu cotidiano que se revela nas expressões: “graças a Deus”, “Deus lhe pague”, “fique com Deus”. Deus para ele não é um problema, mas a solução de seus problemas. Sente-se amparado por santos e santas e por bons espíritos e orixás que ancoram sua vida no meio do sofrimento.

8. Uma das características da cultura brasileira é a alegria e o sentido de humor, que ajudam aliviar as contradições sociais. Essa alegria nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor. O efeito é a leveza e o entusiasmo que tantos admiram em nós.

9. Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular nasce da experiência sofrida, dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo, bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem, seremos invencíveis.

10. O cuidado pertence à essência de toda a vida. Sem o cuidado ela adoece e morre. Com cuidado, é protegida e dura mais. O desafio hoje é entender a política como cuidado do Brasil, de sua gente, da natureza, da educação, da saúde, da justiça. Esse cuidado é a prova de que amamos o nosso pais.

11. Uma das marcas do povo brasileiro é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, ele não é intolerante nem dogmático. Gosta e acolhe bem os estrangeiros. Ora, esses valores são fundamentais para uma globalização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo.

12. O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos que para aqui vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, um pedaço do paraíso que não se perdeu.

Leonardo Boff é teólogo e escritos
Fonte: Carta Maior

terça-feira, 15 de novembro de 2011

FUNDADOR DO TEATRO OFICINA DEDICA SUA VIDA A LIBERTAÇÃO ARTISTICA E SEXUAL


Aos 74 anos de uma vida dedicada à libertação artística e sexual, José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, faz seu manifesto a favor da diversidade: “A sexualidade é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Não acredito na identidade, mas na mistura”

“Eu não acredito em gueto gay, gueto negro, gueto disso, gueto daquilo. Não acredito em ‘clube do bolinha’, em ‘cada macaco no seu galho’, em ‘não me toque’. A natureza é diversa, mas ao lado da diversidade tem a antropofagia, as coisas e os seres se entredevoram.”

José Celso Martinez Corrêa, daqui pra frente somente Zé Celso, sempre diz algo diverso. Nos últimos 50 anos, durante os quais ocupou papel central na cultura brasileira, incluído um período de mais de dez anos de “ócio criativo”, o criador, diretor, ator, autor e força motriz do Teatro Oficina, de São Paulo, vai sempre além do lugar-comum, do discurso do momento, daquilo que queremos ou não queremos ouvir.

Não seria diferente em relação ao tema que move esta edição: “Vejo a diversidade como algo que te devora. Sou contra a divisão, a afirmação de uma identidade. Não acredito em identidade brasileira, mas na mistura. Como diz João Gilberto, ‘o brasileiro não tem personalidade, ele não precisa.’”

107 FACADAS
A primeira entrevista da minha vida foi com o Zé Celso, há mais de 20 anos, ainda no tempo da faculdade. Queria conhecer o artista que revolucionou os palcos brasileiros com espetáculos como O rei da vela (1967) e Roda viva (1968), com música de Chico Buarque. E entender por que aquele que era considerado por boa parte de seus pares (diretores, atores, atrizes, até mesmo críticos) “o maior diretor de teatro brasileiro” estava sumido, fora de cena desde meados da década de 70, quando, após ser preso e torturado por agentes do regime militar, foi para o exílio.
Aos que duvidavam que ele voltaria para retomar seu papel de destaque na cena cultural do país, avisou com todas as letras: “Eu vou voltar, o Oficina vai voltar”. O retorno definitivo foi detonado por um crime hediondo. No Natal de 1987, seu irmão Luiz Antônio Martinez Corrêa, também diretor e ator, foi assassinado a facadas em seu apartamento num ataque homofóbico.
Luiz Antônio estava em cartaz com o monólogo O ébrio e, após sua morte, Zé Celso assumiu o papel. Poucos meses depois, em entrevista ao programa Roda viva, decretou: “Não, nunca... Eu não quero nunca mais sair de cena... Quero atuar, dirigir, tudo, agora eu vou numa outra viagem”.
E que viagem. Nas últimas duas décadas, foi o mais fecundo homem de teatro brasileiro, com montagens históricas como As bacantes (1996), Cacilda! (1998) e a adaptação para o palco da obra monumental de Euclides da Cunha, Os sertões (a partir de 2001).
No segundo tête-à-tête de minha vida com Zé Celso, ele se manifesta favorável a uma lei que criminalize a homofobia, mas não só. “Sou a favor de uma lei contra todos os crimes fóbicos. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem, para que outras cem? O que o cara quer matar ao apunhalar um cadáver sem parar? Uma coisa que não consegue matar nele mesmo, fugir de seu próprio Eros. Precisa passar por um processo de terapia sexual tântrica.”
Embora não sejam mais amantes, Zé Celso vive há quase 25 anos com Marcelo Drummond, protagonista de muitas de suas peças. “Temos dois apartamentos unidos, eu vivo numa ponta e ele na outra, com o namorado dele. Somos parceiros de trabalho e de vida há quase 25 anos. Admito que laços como esses devam ser sancionados por uma lei, mas eu não me casaria.”
Ao falar sobre sexualidade, afasta rótulos: “Acredito que ela é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Sou um homem sexual”.

SEM SE RIFAR
Em 25 de novembro, estreia o documentário Evoé, em que o diretor Tadeu Jungle leva Zé Celso para visitar três lugares seminais de seu universo humano e artístico: a Grécia, onde surgiu o teatro orgiástico até hoje realizado pelo Oficina; Canudos, palco da revolta de Antônio Conselheiro narrada em Os sertões; e a praia de Coruripe, em Alagoas, onde em 1556 os índios caetés devoraram o primeiro bispo do Brasil, dom Pedro Fernandes Sardinha. O documentário também traz entrevistas e imagens históricas dos mais de 50 anos de carreira de Zé Celso.
“O Zé fez tudo o que quis?”, pergunta o repórter a Tadeu. “É a única pessoa que eu conheço que só fez o que ele queria. Não rifou nem a alma nem o corpo. Foi muito difícil, mas, movido pelo desejo e pela intuição, ele conquistou muita coisa. Ele carrega essa medalha com a persistência de um guerreiro.”
"Não posso mais tomar alucinógeno porque sou cardíaco. Só posso fumar maconha e tomar vinho"
[Zé Celso chega ao Oficina para a entrevista já avisando: “Antes de tudo eu preciso fumar um baseado para ficar lúcido”.]


Ficar lúcido? Claro, o estado mais lúcido é o de transe... Não posso mais tomar alucinógeno, porque é vasoconstritor e eu sou cardíaco. Só posso fumar maconha e tomar vinho, porque ambos abrem as artérias. O momento de mais lucidez minha, de preparação, é queimar um baseado e tomar um banho. Aí vêm as melhores sacações. Só acordo depois que fumo um baseado e tomo guaraná em pó. Tum! Pluguei, tô no ar! Antes eu não estava, quando cheguei aqui.

Por quê? Estava chapado, desligado...Esta santa erva, que chamam de Santa Maria, ela faz isso muito rapidamente. Você pode fazer isso simplesmente respirando, meditando. Mas a maconha acelera a lucidez...

Então não há antagonismo entre lucidez e drogas? Não, esse é o conceito de lucidez da velha sociedade positivista, cartesiana, lógica, que acredita numa organização do mundo em torno de um princípio. Eu não acredito em nada disso. Não é o cartesiano, penso logo existo. É existo, logo estou, estou! Antigamente os antropólogos chegavam às tribos, viam tudo de fora e não entendiam nada. Quando passaram a tomar a ayahuasca, as poções mágicas, compreenderam um outro tipo de lucidez, que é a lucidez do pensamento selvagem, que o Lévi-Strauss disse que é a única coisa universal. E o teatro é um ritual arcaico. Eu me lembro nos anos 60 quando a gente começou a fazer as peças viajando de ácido, de cogumelo, a plateia toda embarcava! Dava pra perceber no ar as partículas lisérgicas.

O ser humano tem necessidade de perder o controle? Eu não perco o controle. É como um computador... Eu fico muito mais, digamos, no meu estado pré-lógico, tenho uma lógica muito maior que no meu estado careta. Reflito mais, crio mais, organizo, faço as ligações das coisas. O descontrole é você permanecer careta. É perigoso! Você careta está atrás de uma máscara, está sendo manipulado, obrigado a ficar sujeito àquele papel que tem na sociedade. O que houve na cultura no Brasil até os anos 60, com exceção dos anos 20 do século passado, é que estava tudo programado. Nos anos 60 houve uma desprogramação. Houve de repente uma percepção do aqui e agora, em 1968... Em 67, quando da montagem de O rei da vela, pela primeira vez os conceitos de Oswald de Andrade viraram carne. Ao mesmo tempo no cinema acontecia o Terra em transe; nas artes plásticas o Hélio Oiticica tirava da parede o quadro, vestia no corpo e dançava; o Caetano compunha “Tropicália”; o Gil usava guitarra elétrica; o Plínio Marcos falava palavrões... Essa sincronia que houve em 67 no Brasil antecedeu em certo sentido o que viria a explodir em 68, na França. Quando fomos para lá com O rei da vela, já em 68, não tinha legendas em francês e o público ria e chorava do começo ao fim. Passava uma coisa que ninguém conseguia explicar. Uma sintonia com um retorno ao paganismo. Por que eu não posso ocupar isso? É meu! Que piração é essa de ficar esperando sei lá o quê? Nós tivemos uma sorte enorme de ter acontecido isso. Foi uma terra em transe que fez isso como lava de vulcão, pôs pra fora essa geração, que foi massacrada nos sanatórios, lobotomizada, cortaram a ligação com o cérebro arcaico, com o cérebro frontal, pra pessoa não sonhar, não viajar, ficar desligada.
O ex-presidente Fernando Henrique está levantando a questão da descriminalização da maconha... Mas ele tem um lado extremamente absurdo, que é o de legalizar o usuário e punir o traficante. Se a maconha é legal, então é um comércio como outro qualquer. É uma coisa de Clinton, de fumou e não tragou... Eu acho pouco. Muita hipocrisia. Mas é legal ele falar, deixa ele falar! E pra ele é muito bom queimar uns baseados, está numa idade boa pra isso. Se os velhos fumassem, seriam tão mais felizes. Reativa a memória...

Reativa?! Todo mundo diz o contrário...Imagina! Reativa a memória mais proustiana, o cérebro arcaico, pré-lógico, ela (des)civiliza. Porque a civilização recalca a memória, faz você selecionar a memória e fazer uma imagem de si extremamente construída. E a maconha desconstrói tudo. Você entra de novo em contato com o cosmos, em estado quase de inocência, de virgindade. E redescobre tudo. Eu quero propor uma lei que seria muito sensata. Quero propor não somente a descriminalização como a produção e a comercialização, e o imposto viria para a área cultural. Sou a favor do plantio de uma maconha de alta qualidade, sem noia, sem amônia, sem aquela carga toda que ela carrega hoje. Tudo supervisionado pelos ministérios da Saúde e da Cultura. A única coisa que estimula a violência é a proibição, só isso, mais nada! Se você proíbe sabonete, ai você vai ver, vai surgir criminoso atrás do sabonete.
E essa crise do crack, que vicia logo de cara... Parece que a cura é a maconha, junto com outras coisas pode recuperar muito. E o teatro, a arte. Porque a arte é mais excitante que o crime. Talvez essas pessoas sejam as mais próximas da arte, as mais desesperadas, que não encontram mesmo lugar neste mundo. Você trabalhar com arte no sentido radical é uma coisa que pira. Precisamos colocar essas pessoas em espaços onde elas possam criar, colocar pra fora suas angústias. Que recebam cultura de vida. O que motiva você? O maior motivo de tudo é sempre o tesão. A gente tem uma tendência ao outro, uma tendência a procriar também... Sejam filhos carnais ou objetos, obras de arte, que são como filhos... Esse teatro, é como se eu fosse o bisavô dele. O padre Vieira disse uma frase muito bonita: “Só existimos quando fazemos. Quando não fazemos, somente duramos”.
"As diversidades se atraem. Eu não gosto de uma pessoa igual a mim. O Oswald tem uma frase bonita: ‘só me interessa o que não é meu’"
Esta edição tem como tema a diversidade. Isso sempre esteve no seu vocabulário ou está meio na moda?
A diversidade existe na natureza, e, ao lado da diversidade, existe a antropofagia. As coisas se entredevoram. Isso é fatal. Não fui eu, nem Oswald de Andrade, nem os índios que inventamos. Eles estavam mais próximos do contato com a natureza para perceber isso... Não acredito em divisões, em guetos. Pelo contrário, as diversidades se atraem. Eu não gosto de uma pessoa exatamente igual a mim. O Oswald tem uma frase muito bonita: “Só me interessa o que não é meu”. Você procura sempre o outro. A diversidade é um grande estímulo para a antropofagia, para a devoração, para comer e ser comido.

A diversidade está presente em seu trabalho? De que maneira? O teatro vai ao encontro de todas as identidades, aliás, de todas as (des)identidades... porque eu não acredito em identidade. A primeira coisa que eu trabalho é que o ator tem que rebolar. Rebolar é importantíssimo, vem da África, onde tem influência muçulmana, a dança do ventre. O corpo tem que se desocidentalizar. A cabeça ocidental não é diversa, ela acredita num deus único, no estado, no pai, no chefe, é uma sociedade edipiana. Acredita que tem uma verdade, não existe verdade, existe a vida como ela é, com as mil multiplicidades de formas de vida que existem. A gente trabalha com criança de rua, elas são muito inteligentes. Quando viajamos, aprendemos pra caralho com elas. No Rio trazem o funk, aquele funk que arrasa, na Bahia, o axé, em Pernambuco, o frevo e o mangue beat, no Ceará, o forró. A gente aprende com criança, bicho, planta, pedra. Com artistas jovens e mais antigos, gente pobre, gente rica, brancos, negros, indígenas, estrangeiros.

Com que idade você percebeu sua diversidade sexual? Eu gostava muito de brincar de barro no quintal de casa, em Araraquara [interior de São Paulo], que era enorme. E brincava com toda a molecada... Na rua de trás era a zona. Minha mãe era muito moralista e tentava fazer um cordão de isolamento, mas tínhamos uma atração enorme pela zona. Tinha uma puta chamada Dora, que fumava pela boceta. À noite eu ficava ouvindo o cabaré das putas, chamava Majestique, achava que era palavrão, tocava uns sambas, uma jazz band, eu ficava acordado. Uma vez fugi, uma puta me encontrou e me levou pra casa, chamava Bentinha. Levei uma surra enorme.

Você foi reprimido? Muito, mas nunca me deixei reprimir. Sempre fui muito ruim, rebelde, desobediente. Minha mãe tinha formação espanhola, de bater, tudo... Meu avô era franquista. Um homem que eu adorava, mas tinha aquela linha espanhola de inquisição, castigo, ajoelhar no milho, proibir de ir ao cinema.

E seu pai? Meu pai era maravilhoso. Quieto, um silêncio...

Não era repressor? Nada, nada. Era um homem muito bonito, elegante. No casamento vestiu um terno bois de rose, uma cor que o Clark Gable usava num filme. Ele ia muito ao cinema, tinha uma filmadora 16 mm. Tinha uma biblioteca, em casa tinha obras de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tchecov, Goethe, Euclides... Uma das pimeiras edições de Os sertões. Meu avô paterno também era espanhol, mas era hippie total, tocava guitarra. Minha avó era índia, doidona, minha bisavó andava a cavalo de pé no lombo do bicho, depois pirou, ficava dando cambalhotas com 90 anos, doida. Da minha mãe tinha esse lado espanhol, italiano, cristão. Tomei partido do lado do meu pai. Mas minha geração teve um problema muito grave, teve que matar a família no sentido de matar os personagens, pai, mãe, irmã, avô, aquilo tolhia muito. A família era um microestado, com papéis definidérrimos, se você não matasse... Eu comecei como artista quando perdi um papagaio, sentei na máquina e escrevi Vento forte pra papagaio subir, minha primeira peça, sobre essa necessidade de ir embora, deixar a terra natal...

"A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo"

Eu ia perguntar isso. Essa foi a primeira coisa que você escreveu? Escrevia antes, mas nada que prestasse, coisas que não passavam por mim. Aí eu vi o filme Um bonde chamado Desejo. Até então achava que as pessoas não tinham “por dentro”, que só eu tinha subjetividade. E as pessoas eram de papelão. Quando vi a Vivien Leigh, o Marlon Brando... foi o Elia Kazan [diretor do filme] quem me revelou a intersubjetividade.
Que idade você tinha? Ah... eu devia ter uns, não sei exatamente... uns 13... Fui a uma sessão no Ipiranga [bairro de São Paulo], eu morava em Araraquara, mas vinha passar férias na casa do meu avô, bem aqui em frente. Sou meio Kant, vivi nesse lugar eternamente. Saí pra todos os lados, mas meu negócio é aqui. Uma coisa que eu quero dizer, para não perder o roteiro dos meus 74 anos, 53 de teatro, é que quero construir aqui na Bela Vista, no Bexiga, um espaço arquitetônico e urbanístico que a gente chama de Anhangabaú da Felicidade, porque vai ser construído no terreno do Silvio Santos. Vai ter um teatro-estádio, o estádio Oswald de Andrade, uma universidade antropófoga, a primeira turma já está cursando. Vai ter creche, uma oficina de florestas para reflorestar o bairro. Revitalizar o Bixiga como aconteceu na Lapa, no Rio, que hoje é um paraíso infernal maravilhoso, porque lá foi cultivado o Circo Voador, a Fundição Progresso, o samba, o choro. O Bexiga pode tornar a ser, ligando-se à Augusta e à praça Roosevelt, um centro de mistura total, esse é meu superobjetivo agora.

Qual é o papel da orgia no seu teatro? A orgia está na origem do teatro grego. O encontro no teatro é orgiástico porque tem os atores, o público, você está vivo, tem aquele tesão, aquela eletricidade, sente as pessoas. O ser humano tem que se conhecer mais cedo ou mais tarde. A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a Igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo, de onde a gente vem. Nietzsche tem razão, o cristianismo é das coisas mais degradadoras da condição humana. O que o cristão chama de alma pra mim é Eros. A alma erótica, quando fica com tesão, que vibra, é a mesma vibração da criação estética. Você fica tomado por aquilo e atinge um estado... As maiores inspirações vêm do sexo transformado em Eros. Sexo platônico, que erradamente os monges da Idade Média traduziram como sendo o amor sem físico, sem corpo. Mas não existe corpo sem alma, alma sem corpo. Eu fiz O banquete, de Platão, aqui... Há séculos sou atormentado pela pergunta: “Por que você usa a nudez em cena?”. Eu acho que é o figurino mais bonito que existe, é muito difícil atuar nu. “Ah, você quer tirar a roupa?” Isso não quer dizer nada. É outra coisa. O culto ao corpo. O corpo que tem que estar preparado pra ficar nu.
Você é a favor de uma lei que criminalize a homofobia? Sim, porque qualquer fobia, se for assassina, o cara tem que ser tirado e cuidado. Tem que fazer ele cair na real. Ele está fugindo do Eros dele. Todo homofóbico é uma bicha enrustida. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem. Para que as outras? O que um cara está querendo matar ao apunhalar um cadáver? Está querendo matar algo que está nele e que ele não pode matar. Devia ter uma lei, sim, contra todos os crimes fóbicos. Porque tem homofobia, negrofobia, tem oficinafobia, tem zé-celsofobia. Recebi muita ameaça de morte e não só porque sou gay. Deve ser por outras coisas. Fui torturado [durante a ditadura militar] e até hoje não sei por quê.
Há preconceito na forma como a imprensa trata a homessexualidade? A imprensa trata com preconceito tudo, no sentido de vender para a classe média, porque há uma ditadura da classe média. No teatro, 90% das peças são para a classe média, já que é o público que paga, que vai ao teatro, então só faz para aquela classe. É disso que a gente procura fugir. A gente procura inclusive no elenco ser transracial, transcultural, procura levar outra cultura, da tragédia e da comédia, porque o drama é para a classe média. Odeio drama. No Brasil não tem imprensa marrom. Sou a favor da imprensa marrom. O sucesso de Os sertões na Alemanha foi por causa da imprensa marrom, que publicava artigos contra nós, mostrando a gente pelado, cheio de tarja no pau, na boceta. Pelo menos a imprensa marrom fala, aqui é só essa exaltação da burguesia. O problema não é a homofobia. Nós recebemos essa subvenção da Petrobras, sempre com muita dificuldade, muita demora. Aí sai uma coluna social falando de ajudazinha número um, ajudazinha número dois, como se fosse corrupção o dinheiro da Petrobras ser investido num teatro que tem 50 anos. Uma boa parte dos jornalistas, esses eu trato a pontapés, faz perguntas para fazer escândalo. Eu sou a favor do escândalo, mas não é o escândalo que eu quero fazer. O que eu quero fazer, que é subversivo, não sai.

"Todo homofóbico é uma bicha enrustida"

Você é ciumento? Fui, não sou mais. Pelo contrário, sou instigantemente provocativo para que aconteçam coisas. Incentivo que as pessoas namorem no teatro, à vontade.
E você é ciumento do seu teatro? Não, mas eu gosto dele, defendo ele.
Dos atores e das atrizes? Não. Eu trabalho a liberdade absoluta entre as pessoas. O Oficina Uzyna Uzona é uma organização onde tem muita coisa que eu nem sei que está acontecendo. Felizmente a gente conseguiu uma auto-organização... Dou muita importância ao autocoroamento, como Napoleão fez, as bacantes fazem. A pessoa sabe de si. O mais importante para o ator de teatro é ser um anarquista coroado. Ele é um louco que se coroa, assume. Porque no teatro a entrega é total, como no amor. Tenho a tendência de exigir que as pessoas tenham a mesma entrega, mas não posso exigir nada. Trabalho para que isso aconteça. Incentivo pessoas que tenham um mínimo de autodeterminação a desenvolver seu máximo potencial humano. A maior função do teatro é desenvolver a consciência do poderio energético que o indivíduo tem. Claro, o indivíduo plugado na coletividade. Só o cara que é plugado no coletivo e no mundo tem o poder de enfrentar essa lavagem cerebral da cultura dominante, da anticultura, da contracultura. Eu não sou contracultura, sou a favor da cultura. A contracultura é a que minimiza o potencial e o mistério da vida, do humano.

E a discussão do casamento gay? Eu não me casaria nunca. Mas acho importante, se isso é importante pra alguém...
Teme que possa reproduzir o modelo heterossexual, com a monogamia no centro? Depende da cabeça das pessoas. O cara pode ser gay e supercareta. Eu não me casaria, mas vivo com o Marcelo Drummond, que é protagonista neste teatro, é o Hamlet, é o Oswald. Não somos mais amantes, mas vivemos em dois apartamentos unidos, eu numa ponta, ele noutra, com o namorado dele. Faz 25 anos que a gente trabalha e vive junto. Criam-se laços, econômicos e de outros tipos, que admito que devam ser sancionados. Mas eu não me casaria.
No documentário Evoé, que o Tadeu Jungle acaba de finalizar sobre você, uma hora você canta uma música mais ou menos assim: “Que os meus inimigos vivam muito para ver de perto a minha vitória...” [Começa a cantar] “E com essa fazer a narração da nossa história.”

Então, Zé, quem são seus inimigos hoje? Olha... é uma coisa que desanima... que não está à altura da luta. O Silvio Santos, com quem briguei muito para não construir um shopping em torno do Oficina, estava à altura. Foi um adversário maravilhoso, me ensinou muito. Se não fosse ele, eu não teria o conhecimento que tenho hoje do capital financeiro, de como funciona o sistema e como enfrentá-lo. Mas a burocracia é um inimigo abstrato... Não existem fundos no mundo que possam resolver o trânsito de São Paulo e a burocracia. É um tormento... a relação que tem o estado... a coisa mais difícil que existe atualmente é... são as relações de impedimento de produção. Nós somos trans-humanos para fazer o que fazemos. E a dificuldade que há do entendimento disso. Também acho que o maior inimigo hoje seja certa fobia que as pessoas passaram a ter do teatro. O teatro deveria ser popular como o futebol. Porque o trabalho do teatro pressupõe a formação de craques. De divas. De divos. O ator deveria ter as condições que tem o jogador de futebol. Nós trabalhamos com concentração, com muitos exercícios físicos. Essa fobia da cultura... A cultura não constou na agenda da Dilma. O lugar foi ocupado por fundamentalistas. A discussão do que é cultural, aborto, tratamento ao homossexual, sei lá, tudo isso virou discussão entre Igrejas querendo tomar o poder e o lugar da cultura. Porque isso é cultura. São as coisas fundamentais da vida, né? Daí vem o desrespeito ambiental, às tribos indígenas... porque falta a noção da cultura.
Mas isso não vem de agora... O apoio à cultura brasileira floresceu na época de Getúlio Vargas, quando o Gustavo Capanema era ministro. Nos anos 60 o teatro tinha muita importância, por isso foi tão reprimido a partir de 68. Os militares reprimiram a cultura porque sabiam que era uma coisa perigosa para a ordem que eles estavam estabelecendo. Com o neoliberalismo a tendência foi de a cultura virar mercadoria, serviço, consumo. Já o Gilberto Gil e o Juca Ferreira trouxeram a tropicália, a antropofagia para o Ministério da Cultura. O próprio Lula foi um presidente antropófago.
Como assim? Ele fez um governo cheio de rebolado. De Carmen Miranda. De pega pra cá, joga pra lá. Ele sambou no poder e foi comendo tudo o que podia. Fez um governo incompreensível do ponto de vista marxista. Só quando ele abandonou a ideologia realmente e foi para o pragmatismo, que é a essência da antropofagia – é o que é e, dentro do que é, o que eu posso fazer? –, quando ele superou a máscara de operário, de líder sindical, quando se descobriu pernambucano, quando chegou até a mãe dele de volta, aí ele teve uma humanização progressiva. E descobriu a si mesmo. Antes tinha muita influência da Igreja. O Lula fez um governo laico maravilhoso nesse sentido. Com nenhuma religião, com nenhuma ideologia, com nada. E teve um Ministério da Cultura luxuoso. O Gil e o Juca conseguiram uma verba extraordinária, como o ministério nunca tinha visto.

"Lula fez um governo cheio de rebolado, de Carmen Miranda"

E a Dilma, como está esse começo? Gostei muito do discurso dela na ONU, do que disse sobre globalização, sobre nosso direito de interferir e participar de qualquer assunto no mundo. Seu erro trágico foi o corte de dois terços no Ministério da Cultura, depois de toda a luta do Gil. A [ministra] Ana de Holanda está sem armas. No Brasil essa questão do corte fiscal virou tabu, ninguém pode tocar nisso. O fato de a Dilma não ter entendido ainda a excepcionalidade da cultura, isso me preocupa. O teatro precisa estar no centro, no coração de um plano estratégico da erradicação da miséria.

Explique isso melhor. A erradicação da miséria se dá juntamente com a erradicação da miséria cultural. Mais do que a educação. Porque a educação pode se propagar e formar uma série de indivíduos voltados para o mercado e que não vão saber de si. Não vão saber o que têm na frente do nariz. Não são criadores. Já o teatro é uma universidade... é a coisa que mais forma o indivíduo em contato com o outro, com o coletivo. O teatro é a catarse, você sai diferente do que entrou. Só a cultura propicia a possibilidade de sonhar, de imaginar, de criticar, de saber de si mesmo, de saber do seu corpo, de saber da natureza. A cultura, e não a macroeconomia, é a infraestrutura da vida, a energia propulsora. A macroeconomia está fazendo mal à humanidade. Quando o indivíduo, por meio da cultura, desperta para a autopercepção de que é livre, na hora ele sai da miséria. Porque tem muita gente que tem dinheiro e está na miséria, humanamente falando. Não sabe de si, está perdida. Aí vai para o crack, para o consumo, para essa bobagem de celebridade.

E a educação? Os ministérios da Educação e da Cultura deveriam se juntar, não
compreendo educação sem cultura nem cultura sem educação. A gente vive uma época de inteligência, de saber e de inventividade. Tanto que nos Estados Unidos tem gente que está abandonando universidades para ir ao Silicon Valley, onde ficam as empresas de tecnologia. A China investe 18% em pesquisa, o Brasil investe 1%. O Brasil deveria priorizar os ministérios da Educação e da Cultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia, que são realmente as coisas que podem levar o Brasil para outro patamar. Com a responsabilidade que o Brasil tem diante dos problemas do mundo hoje, não haver investimento nessas áreas é algo doentio, uma fobia. Não querer crescer, não querer desenvolver, querer ficar cover, querer comprar coisa de segunda mão, querer continuar zumbi, autista. Eu aposto inteiramente na nossa cultura, não como algo nacionalista. É a mistura de gente, gente que tem de sobreviver no balanço do samba, no equilíbrio desequilibrado do samba, é um país que, se tiver investimento, nossa! É hora de juntar educação, cultura, ciência e tecnologia e investir maciçamente. Mandar ver.

Essa é a sua visão de Brasil? Ligado, evidentemente, à saúde e ao ambientalismo. E tem que democratizar a democracia. Nosso congresso hoje não é democrático. Precisamos ter uma democracia mais direta.

"Sinto dificuldade de conseguir coisas que outros conseguem com facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil. Mas eu gosto da vida"

Como está sua saúde, Zé? Não está boa, não. Estou com um pouco de labirintite, o coração doente, tenho um marca-passo. Agora, com 74 anos, estou começando a sentir realmente a velhice. Até o ano passado eu não sentia. Agora, como fiquei dois anos sem férias e trabalhei demais, mas demais mesmo, sem parar nenhum dia, tenho a impressão que perdi... Estou tendo muito pesadelo, tenho que me reconstruir a cada dia. Tô muito cansado, preciso ficar uns 15 dias no mar. Agora eu vou para Pernambuco, ficar o dia inteiro no mar, na água quente, tem de ser quente. E caminhar, caminhar muito. E depois voltar para o teatro.

Tem medo de morrer? Não tenho medo da morte, eu tenho desejo de viver. Eu sei que também tenho certa importância na realização de vários projetos. Mas talvez as coisas aconteçam mais rapidamente sem mim. Como em vida eu sou uma pessoa que aprontou muito, não sou unanimidade. Eu sinto muita dificuldade de conseguir as coisas que outras pessoas conseguem com mais facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil [risos]. Mas eu gosto de viver. Eu gosto da vida.

Fonte: Revista Trip

sábado, 12 de novembro de 2011

TURISMO FORTALECIDO NO PARÁ


Com o objetivo de fortalecer o segmento turístico, o Plano Estratégico de Turismo do Estado do Pará, denominado “Ver-o-Pará”, foi lançado pelo governador Simão Jatene e pelo presidente da Companhia Paraense de Turismo, Adenauer Góes, na noite de sexta-feira (11), no Teatro Maria Sylvia Nunes, na Estação das Docas. Na presença da secretária Nacional de Políticas de Turismo, Isabel Mesquita, e de diversas autoridades estaduais e municipais, o governador também assinou um Termo de Compromisso para criação da Secretaria de Turismo do Estado do Pará.

“Hoje, ao apresentarmos esse plano estratégico para o turismo, temos a oportunidade de vermos nosso potencial e também nossos desafios. Ao assinar a criação da Secretaria de Turismo, não faço simplesmente para criar mais um órgão, e sim para que seja um instrumento concreto de viabilização do turismo neste Estado. Agora o projeto de lei será encaminhado à Assembleia Legislativa, e não tenho dúvida que, de forma rápida e eficiente, os parlamentares deverão aprová-lo”, afirmou o governador.

Resultado de um trabalho realizado pela Companhia Paraense de Turismo (Paratur), com a consultoria da empresa espanhola Chias Marketing, Adenauer Góes destacou que o plano “Ver-o-Pará” surge como norteador das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento e fortalecimento do turismo paraense, como ferramenta de geração de emprego e renda e melhoria da qualidade de vida dos que estão ligados direta e indiretamente a essa cadeia produtiva.

“O plano contempla uma série de questões, desde as emergenciais, que já começaram a ser postas em prática desde agosto deste ano, até as nossas metas, a serem alcançadas nos próximos anos. Ele fortalece a gestão pública do turismo, a fim de que o Pará dê passos largos rumo ao desenvolvimento, e ainda consolidará o turismo como uma atividade produtiva, capaz de gerar emprego, renda e melhorar a qualidade de vida da nossa sociedade”, reiterou o presidente da Paratur.

A secretaria Isabel Mesquita disse que o plano é lançado em um momento importante para o turismo paraense. "Esse tem que ser o momento da Região Norte no país, para avançarmos. Fiquei muito feliz com a nova missão que o ministro Gastão Vieira (Turismo) me reportou e, com certeza, esse plano apresentado hoje será uma espécie de guia e me ajudará muito nesse trabalho", declarou, referindo-se ao Programa de Aceleração do Turismo, que deverá ser elaborado pelo governo federal.

Metas – Originalidade, criatividade e sustentabilidade. Estes são os conceitos que passarão a integrar a marca do turismo no Pará. Apresentado por Patrícia Sevilha, diretora da Chias Marketing, responsável pela coordenação na elaboração do plano, o principal objetivo do “Ver-o-Pará” é gerar renda e bem estar.

Com atuação estratégica, a meta é crescer 10% até dezembro de 2012 e, a partir do segundo ano, chegar a 15%. “Na primeira fase, de 2012 a 2014, teremos o que nominamos de Avança Pará’, que são as ações para estruturar o turismo e nos posicionar no cenário, e de 2015 a 2020 a ‘Consolidação do Pará’ como liderança na Amazônia”, explicou.

Outra meta é aumentar a quantidade de turistas, que hoje ultrapassa 600 mil por ano, assim como o tempo de permanência deles em Belém e demais regiões turísticas. Para isso, será necessário que o orçamento para o setor seja triplicado em 2012 e, proporcionalmente, reduzido nos anos seguintes. Entre as principais ações do plano está a melhoria na qualidade dos produtos que o Pará oferece.

Ferramentas – Também foram lançados o novo site promocional do turismo (www.turismoparaense.pa.gov.br), juntamente com a nova marca turística do Pará. As novas ferramentas darão identidade aos produtos comercializados, que carregam o slogan “Pará: Obra prima da Amazônia”.

Produzida pela empresa Griffo Comunicação na cor do açaí, a logomarca une traços das culturas marajoara, tapajônica e xinguara, além de agregar a natureza amazônica, para sintetizar os atributos do Pará. Já o novo site é uma parceria da Paratur e Empresa de Processamento de Dados do Pará (Prodepa), e estará disponível nos idiomas português, inglês, espanhol, francês e japonês.

Outra característica do site será a atualização automática de notícias ligadas ao turismo, por meio da Agência Pará de Notícias, mantida pela Secretaria de Estado de Comunicação (Secom).

Amanda Engelke - Secom

A ESPETACULARIZAÇÃO DA BARBÁRIE


A barbárie vai fazendo suas vítimas reais e virtuais, sob os clarins da indiferença de uns, da hipocrisia e do cinismo de outros e do regozijo daqueles que, cegos e surdos diante do sofrimento de milhões de seres humanos, insistem também debochadamente que o problema não é sistema econômico, o problema é o “ser humano”, e que esse não tem jeito.


Mal a humanidade inicia a sua caminhada pelo século XXI adentro e os sinais exteriores da barbárie reclamam seu perverso protagonismo no dia a dia de todos nós cidadãos e começam a pontuar, a se destacar, nos grandes feudos de comunicação em massa. O capitalismo perdeu a compostura de vez e escancara para quem quiser ver a verdadeira natureza de suas entranhas.

A mídia corporativa, a televisão em especial, dominada pelo entretenimento e pelo jornalismo de mau gosto dos últimos anos, avançou um degrau no plano de embrutecimento das consciências, na banalização sistemática dos costumes, dos sentimentos, e na alienação política dos cidadãos. Mas com uma curiosa e, sobretudo, perversa estratégia: a culpa dessa tragédia que nos enfiam pelos olhos e ouvidos, a sua articulação, será sempre dos terroristas muçulmanos ou poderá ser também dos excluídos e seus líderes populistas, ou ainda dos que insistem em teses anticapitalistas... E contra toda essa gente será necessária uma ação profilática e de preferência seguida por uma propaganda de impacto, o mais realista possível.

Nessa nova escalada para impor o terror e o medo, o primeiro a tombar foi Sadan Hussein após o genocídio no Iraque. Alguns anos depois vem a morte do “tão procurado” Osama Bin Laden e o genocídio do Afeganistão provocado pela caça ao líder da Al Qaeda. Agora, o cruel assassinato de Muhamar Khadafi e o genocídio líbio. Quem serão os próximos: Ahmadinejad no Irã, já anunciado inclusive, Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia? Algum eventual ditador africano ou asiático?

O “Complexo Industrial/Militar”, expressão tão em voga nos anos 60, não só não deixou de atuar à sombra todos esses anos, como tem se modernizado e feito – para usar linguagem atualíssima – o “upgrade” de suas atividades, alardeando a propaganda menos dissimulada de seus interesses. O desuso dessa expressão apenas mascara a contínua busca por outros eufemismos que escondam a ganância, a selvageria e a brutalidade que toma conta da minoria de milionários que comandam as grandes corporações de sociedades anônimas, as multinacionais que mantêm em suas mãos as rédeas econômicas e políticas de um mundo cada vez menos civilizado. Segundo pesquisa recente feita na Suíça por um Instituto de Tecnologia, pouco mais de 1300 grandes empresas entrelaçam-se nessa rede de domínio da economia mundial.

Como nos clássicos romances da literatura policial cabe aqui uma primeira pergunta: a quem interessam essas mortes e a grande e insana orgia midiática em volta delas? A lista real e hipotética indicada num dos parágrafos acima aponta para direção bem clara: a “democracia” ocidental e cristã, tutelada por meia dúzia de países no mundo sob o comando cruel e cínico dos Estados Unidos da América, procura, já sem nenhum escrúpulo, manter sob seu domínio alguns dos maiores produtores de petróleo e gás mundiais, ainda e por bom tempo as principais fontes de energia, para tocar os seus grandes negócios e não só.

Não há aqui meio termos. Sob o olhar passivo e subserviente da ONU e a sempre que necessária e providencial ajuda profilática da OTAN (organismos que necessitam exercitar os músculos de seus diplomatas e soldados em férias compulsórias após a queda da ex-União Soviética), a África Setentrional, o Oriente Médio, uns tantos países asiáticos e sul americanos, precisam – sempre e quando isso for possível – continuar explorados e mantidos sob dependência como fornecedores de matéria prima e mão de obra escrava. E importadores de manufaturados. Tudo para o regozijo dos “homens de bem” que tanto se preocupam apenas com as liberdades humanas que lhes dizem respeito.

O cinismo midiático atual não deixa dúvidas quanto a isso. Antiga ou não, essa visão de mundo e essa teoria continuam a ser postas em prática, apesar de se apresentarem em novos e sedutores envoltórios, onde as insinuantes sereias do neoliberalismo tiveram e têm papel de destaque, não importando aqui que os novos Ulisses sejam de esquerda, de direita ou não tenham ideologia nenhuma. E não é pequeno entre nós o número de defensores dessa ignomínia, seja sob qualquer pretexto, inclusive o religioso.

Mas, salvo erro de avaliação, parece que o tiro, a qualquer momento, pode sair pela culatra. A insanidade dos grandes bancos mundiais e dos agentes financeiros do capital especulativo, onde a produção de mais e mais capital (real ou virtual) – incluídos aqui o tráfico de drogas e armas, cujo volume em bilhões de dólares não sofre qualquer tipo de controle – já supera em muito a produção de bens para o consumo. Esse capital especulativo dá sinais de preocupação quanto ao futuro, não da humanidade (seria esperar demais dessa gente), mas com o futuro de seus próprios negócios, numa demonstração inequívoca de que todo o sistema pode estar à beira de uma crise não só de nervos, mas de anomalias mais profundas.

A ágora grega, outrora palco milenar de grandes festas e debates democráticos, transformou-se nos últimos meses em cenário de lamentações e revoltas, onde o desespero e a dor de milhões de cidadãos fez subir o índice de suicídios, numa antevisão macabra do que poderá ocorrer em outros países. O temor toma conta do mundo e a hora é de reflexão. Mais do que isso, talvez: é hora de ação.

Contudo, na contracorrente das manifestações e revoltas populares por inúmeras cidades no mundo, os insensatos apologistas de um sistema que vaza água por muitos lados e seus irresponsáveis porta-vozes midiáticos, insistem em nos fazer crer que determinados governos, os árabes em particular (muçulmanos ou não), bem como outros, eleitos democraticamente ao redor do mundo, são comandados por “ditadores” que merecem ser abatidos como cães para se dar a impressão de que a democracia ocidental e cristã que defendem (a sua, claro) é quase que a expressão de um direito divino. As cruzadas e a Inquisição não fariam melhor.

Se você consegue mostrar um ser humano cruel, ditador em seu país cheio de gás e petróleo, acuado, abatido como um animal selvagem dentro de um buraco, estuprado numa tubulação ou num fundo de quintal, salpicando as cenas seguintes com grupos fanáticos agitando bandeiras e armas em nome da “liberdade e da democracia”, como insiste a hipocrisia de Hilary Clinton e Obama, mais um passo é dado na manipulação de mentes e consciências. Um passo estratégica e maquiavelicamente preparado.

Os programas matinais e vespertinos de emissoras de rádio, “talk-shows”, novelas e séries de televisão, alguns filmes de Hollywood, denúncias jornalísticas de origem duvidosa, revistas semanais impressas muitas delas naquele papel do Alfredo, jornais diários despudoradamente pusilânimes, e isso em quase todo o planeta, formam o renovado e agressivo pelotão de frente da ideologia dominante, usando a força de imagens e palavras para iludir, confundir, levantar suspeitas onde muitas vezes elas não existem; encobrir crimes dos apaniguados e, criar, enfim, a impressão de que esse – se não é o melhor dos mundos possíveis – é o mundo que se tem. E devemos todos nos conformar com isso. Devemos?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 diz em seu artigo 1º: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. Parece incrível que estas palavras tenham sido escritas um dia, mesmo levando-se em conta as circunstâncias de terem sido impressas no final de uma guerra devastadora. A isso, entende-se. E com elas concordamos. Contudo, a memória capitalista é cada vez mais curta e seletiva, como convém a todos aqueles para quem o sistema é vantajoso, ou seja, os próprios donos do capital e seus vassalos.

A barbárie vai fazendo suas vítimas reais e virtuais, sob os clarins da indiferença de uns, da hipocrisia e do cinismo de outros e do regozijo daqueles que, cegos e surdos diante do sofrimento de milhões de seres humanos, insistem também debochadamente que o problema não é sistema econômico, o problema é o “ser humano”, e que esse não tem jeito.

O natal se aproxima. Sabemos que o Papai Noel não existe, mas como é bom acreditar no bom velhinho, não é mesmo? A árvore enfeitada e os presentes à sua volta dão validade ao espírito cristão por mais 24 horas, juntando os despojos de nova e lucrativa campanha consumista, bem como nos tranqüilizando a todos a consciência de bons cidadãos.

Exorcizados, preparamo-nos para os novos espetáculos da barbárie.

Izaías Almada
Escritor e dramaturgo. Autor da peça “Uma Questão de Imagem” (Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos) e do livro “Teatro de Arena: Uma Estética de Resistência”, Editora
Fonte: Carta Maior